terça-feira, 5 de junho de 2018

Adeus, Pomar

esse grande júlio pomar que parte para o latíbulo e deixa a beleza toda na terra; estais entregue aos anjos, querido pomar, mas o teu lugar é aqui; haveremos de saber-lhes finalmente o género porque vais pôr em telas celestes seus rostos que nem conhecem. obrigado

Eutanásia: que fim?

a seara do latíbulo é desprovida de maquinetas; estende-se única, prazerosa, por mel leitoso.
e o profundo dos infernos, vasto por tudo quanto vastos são os homens, não aglomera gente às cavalitas, espaço há de sobejo, e calor humano.
não se compreende portanto o porquê de nos não lançarem brandos às eternidades, mesmo querendo nós.
afinal a dignidade é um souvenir de vender às pressas, é um adorno para as portinhas da geleira com que, mais tarde ou mais cedo, haveremos de prendar o alto ou o quarto do diabo: aqui tens, senhor meu, em memória de minha terra.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Sangue

Assim como qualquer português que se preze por sê-lo, bem sei sobre qual o mal do mundo. 
Ter concedido Portugal maior espaço ao mar de sangue na bandeira é talvez a única esperança. Não. Sentido. 
Quando Jesus morre, a Terra é um mar perfeitamente decifrável. De dentro dos peitos a promessa se ausenta e a dor propaga largo como o sangue da bandeira. O mundo está por conhecido. 
Nenhum prelúdio bestial ou tão pouco qualquer sonata duradoura perdurou no tempo por ter nascido sob um raio de sol bonito. 
Como muitos, sei bem sobre o mal do mundo. 
As linhas de um texto, para Nietzsche, mais valem pelo sangue. De outra forma escrever é pouco. Pintar é nada. Comer é menos por não se ter fome. Viver, é uma estadia mal escolhida. Morrer é uma impossibilidade. É, no limite, e para o mal do mundo, uma coisa que só nos acontece uma vez, insólita. Por isso o mundo vai para mal, por isso a gente perdura na eternidade que demora a esperança. As pessoas se gastam na esperança. As pessoas se gastam. 

Sujei a folha de sal. Foi um princípio para a vida.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

A genuinidade da não oferenda em dia de S.Valentim

Facilitismos. Não passam de meras ocasiões que alguém proporcionou para o sentimento. Está tudo para o amor porque o disseram. Apontaram por dedos para o redor de uma data qualquer. Facilitaram. 

Também há quem diga que o bebé mor não veio ao mundo em finais de ano, ou que não foi depois que partiu sangrando numa tarde em que a bátega diluiu na areia. 

Sobre amêndoas nem se falará. No fundo, são tudo resumo duma ânsia monstruosa, de uma ânsia. Quer-se mais é engavetar. Dizer-se por alta boca que aqui se chora, ali se ri. E nem me apelidem já de coisas nenhuma. Pensem bem primeiro. 

Não amar nem ser amado, hoje, mais que nos outros dias, muito destoa. Não há ninguém que em plena consoada menos valorize quem o rodeia que nos dias anteriores. Depois da data de uma morte, reconsideram-se as achegas, pondera-se a conduta empregada, oferece-se muitas vezes ao arrependimento. 

No dia dos meus anos sempre choro. Se soubesse de antemão a data de meu último dia, todos seriam dias mal aproveitados, desperdiçados, não-dias, porque a noção de efemeridade mais se divisava clara sobre as outras. 


Melhor se está vivendo a cair, sem previsão de chão ou anúncio da própria queda. A cair, tudo está por natural. Ninguém encena quando cai. Durante uma queda o ator mais virtuoso muito se confunde com a originalidade de um qualquer boneco de palhas.

Prefiro mais que me não digam as datas. Que todos os dias sejam pertinentes para a multiplicidade. Igual à grande hipótese de todas as coisas. 
Por precária ser a minha capacidade para a representação, quero ser natural e cair. Só os atores podem bem iludir no dia de S.Valentim quando se zangaram com o par na véspera. Quem só é uma pessoa sabe pouco é jogar ao fingimento. Finge só quando quer, não quando é para fingir. 

O catorze de Fevereiro só resulta bem se for confundido com a normalidade do treze de Setembro, por exemplo. 



Hoje questionaram-me: que vais oferecer? E eu disse: nada, porque não me esqueci que dia era hoje. 

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Hired: Six months undercover in low wage Britain”

Cornadas e derrames. Manda a moderada agressividade que tenho que vos deixe a nota de rodapé: lembremos o sentido figurado. Só desta forma talvez os chifres dos abastados possam, abstratamente, espetar-se contra o muro rigíssimo, e seu líquido escarlate ouse a humanidade de se estender natural sobre as pedras. 
James Bloodworth veio a escrever sobre as portentosas mãos de um grande bicho. Barafustou quanto pôde sobre suas palmas mas, só passado um mês da humilde escravatura decidiu apartar-de dos chicotes e cometer a ousadia de falar. 
Não é de admirar que os grandiosos lucros de uma grande besta, aqui e acolá, escondam nas mucosas as maiores atrocidades às suas presas: ordenados baixíssimos, condições vergonhosas, almoços para lá das seis da tarde e revistas de largos minutos a título não pago. 

A amazon é só um exemplo. Aquele que James nos mostra em “Hired: Six months undercover in low wage Britain”. Está por aí. 


Continuemos com este modo de serventia. Ocultando as temerárias profundezas do rio pelo brilhantismo da superfície. Afinal, mergulhar é de perigo, e sempre se soube que é na mais longínqua fundura do ser que constam os traços capitais dos escrúpulos. Lá onde ninguém vê, quando ninguém vê, porque ninguém vê. James viu, falou. E nós?

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

“Hylas and the Nymphs”

Acabarão com tudo. Por este andar, acabarão com tudo. “Hylas and the Nymphs” foi retirado da Manchester Art Gallery por ser considerado como ofensivo. Está no cerne da ofensa a dita forma pubescente em que se encontram os corpos das mulheres, aquelas tanto pálidas figuras a que pouco ou nada ficou devendo a beleza. Eva teria julgado como normal. Por muito puritana que fosse a primeira dama, nem por isso pertencia àquela casta de horrorizados a quem sufoca o simples vulto de uma desnudada coxa branca. 
Como sabemos, uma rápida e pertinente pesquisa naquele vasto poço do conhecimento assim o diz, John W. Whaterhouse faleceu fez agora cem anos. Ora presume-se, e talvez nesta imprudente dedução se cometa o erro capital, que passado cada ano, diga-se, à medida que se avança no tempo, a tendência é que se torne o homem mais nutrido de conhecimento. O sustento desta afirmação está noutra lógica presunção, não menos apropriada, que é a de verificar que nas costas de outros havemos de ver as nossas (por alguma razão se o terá escrito assim). Mas os sucedentes acontecimentos dos quais vamos tomando conhecimento levam-nos a refutar impiedosamente a mais convicta e outrora deduzível conclusão. Pelos vistos, passados cem anos, a humanidade parece ter aprendido nada. Sabe pouco. Recordemos aquele triste acontecimento que tomou lugar nas nossas lusitanas terras, nesta sobre todos pátria,  recordemos, de má memória, o nome do senhor Sousa Lara, a quem muito incomodou a obra daquele que viria anos mais tarde a  sagrar-se Nobel de Literatura em Português. Não se aprofundará. Nem este nem outros tantos milhentos casos que, eclodindo da penumbra, se estenderam à luminosa luz do dia. 

O que se tem é o direito a sentir-se ofendido; não o de proibir uma ofensa. 

Talvez tenha sido a boca larga através da qual falou o povo, há que pôr a hipótese, pelo menos parte dele, mas convenhamos, se assim fosse, que haveríamos de fazer com os restantes menos puritanos, com todos os outros a quem apraz o distinto ponto de vista, a opinião divergente, o vislumbre de uma tela a meio traçada por um rasto de sangue, aqueles que não desatam a rugir  em clangores sincopados ou coro de banda uniforme perante a expressão artística onde se distingue um corpo nu? 


Se as fotografias do Chico Buarque às crianças esfomeadas tivesse despontado a mesma reação noutra gente, eu poderia afirmar mais contente: não é que seja ofensivo, só faz é pesar a consciência. Menos mal. Era ao menos uma esperança. 

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Eurovisão 2018

Não creio que haja registo na história da eurovisão de um só e solitário país bicampeão. Seja como for, vista que está a lista dos declarados candidatos ao assalto, creio que a defesa se fará de uma forma bastante sólida. Tirante o sunset do Peter Serrado, que me faz pressentir receosamente o retorno aos denunciados fireworks do Salvador, antevisão cuja responsabilidade, certeiro tenha sido o tiro ou fracassado prognóstico, desde já a toma quem escreve, quero crer que nomes como Fernando Tordo com Para te dar abrigo, Jorge Palma com ou Sem medo, ou até mesmo aquela sempre doce voz de quem os textos são nunca recurso aos estrangeiros dicionários, falamos de Capicua e Sobre nós, e sobre nós, estamos bem entregues. Diga-se, como já terá ficado provado em vários tempos, que pela capa não se julga o livro, mas confessemos, não seria agora eu o desavergonhado pioneiro nestas artes de adivinhação. Por alguma razão se põem os títulos na capa. A ver vamos.